'Vou processar o governo Trump pelo direito da minha filha à cidadania', diz imigrante brasileira grávida e sem documentos
Trump assinou ordem executiva que retira direito à cidadania por nascença em território americano para migrantes indocumentados ou temporários. Estados e sociedade civil já foram à Justiça contra decisão do republicano. Alice e sua família. Grávida de sete meses, ela vê sua segunda filha sob risco de nascer sem cidadania americana.
Arquivo pessoal via BBC
Não foi uma surpresa para a brasileira Alice*, mas nem por isso ela está menos preocupada: no primeiro dia do governo Donald Trump, em 20 de janeiro, o presidente dos Estados Unidos assinou uma ordem executiva que retira o direito à cidadania americana de bebês nascidos em território americano que sejam filhos de imigrantes.
Esta era uma das promessas de campanha do republicano, que se elegeu com o discurso linha dura contra os imigrantes e o plano de deportação em massa de milhões de indocumentados.
✅ Clique aqui para seguir o canal de notícias internacionais do g1 no WhatsApp
É o caso de Alice. Há quase 11 anos, ela deixou o Mato Grosso e atravessou a nado o Rio Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, com o marido, em busca de uma nova vida.
Aos 35 anos e grávida de 7 meses, ela espera pelo nascimento de sua segunda filha em abril.
A primeira filha, hoje com 9 anos, já nasceu na região de Boston, em Massachusetts e tem passaportes brasileiro e americano.
Depois de anos iniciais difíceis, em que chegavam a cumprir jornadas em três empregos por dia, o casal conta que tem hoje boa condição financeira no país.
Ela coordena uma equipe de limpeza doméstica, ele possui uma construtora. A renda mensal da família chega a US$ 20 mil (cerca de R$ 120 mil). Eles têm casa própria e alguns terrenos nos Estados Unidos.
Bem estabelecido, o casal desejava o segundo filho há algum tempo, e Alice chegou a ter um aborto espontâneo antes da atual gestação.
A alegria pela chegada da nova integrante da família, no entanto, divide agora espaço com a tensão, já que na atual condição, a bebê não receberia cidadania americana ao nascer.
"Acho que ele (Trump) voltou com muito mais ódio, basta ver a quantidade de coisas contra os migrantes que ele está fazendo. Apenas uma pessoa com muito ódio para fazer uma maldade dessas", diz Alice, em referência aos anúncios de Trump de declaração de emergência na fronteira, para mobilizar o Exército contra a entrada de imigrantes e o fim das políticas atuais de pedido de asilo, além da ordem executiva sobre o direito à cidadania por nascença.
"No meu caso, eu já tenho uma filha americana, e aí eu teria uma segunda filha que seria considerada uma imigrante ilegal. Isso não é justo e acredito que seja ilegal e vá ser revertido."
Trump pretende acabar com cidadania automática para filhos de imigrantes ilegais, e isso afeta brasileiros
Alice diz que já consultou três advogados sobre o assunto. Ela conta que nunca teve coragem de iniciar a regularização de sua situação migratória por temor de acabar deportada no processo, mas afirma que tem a intenção de processar os Estados Unidos caso sua filha nasça sem o direito.
Legalmente, imigrantes indocumentados têm direito ao devido processo legal antes de serem deportados — e também podem acionar a Justiça caso se sintam prejudicados em qualquer outra situação enquanto vivem no país.
"Se por acaso essa ordem executiva realmente for adiante, eu processo o Estado, processo o governo federal", diz Alice.
"Isso não tenho medo, não, porque pago meus impostos, apesar de eu ser ilegal, faço tudo que tem que ser feito para andar certinho aqui dentro do país. Vou até o fim para conseguir os documentos da minha filha", diz Alice.
Ela reconhece que sua situação nos EUA é irregular e diz que sonha com o momento em que possa buscar uma anistia e se legalizar. Mas reafirma que não se sente uma criminosa, como Trump frequentemente descreve imigrantes indocumentados. Alice é evangélica e se descreve como uma pessoa ideologicamente de direita.
Decisão de Trump é constitucional?
Trump assinou mais de 200 ordens executivas desde que tomou posse.
Getty Images via BBC
Ordens executivas de presidentes americanos não precisam de aprovação no Congresso e entram em vigor a partir do momento em que são assinadas pelo mandatário.
Trump assinou mais de duas centenas delas em suas primeiras 24h no poder.
No caso da ordem executiva sobre a cidadania, o texto determina que não mais serão considerados americanos por nascença bebês nascidos nos Estados Unidos após 30 dias da assinatura do documento.
A medida tem como alvo filhos de imigrantes indocumentados (cerca de 11 milhões de pessoas) ou que tenham vistos temporários de trabalho, estudo ou turismo (outros 3 milhões de pessoas).
A revogação do direito de cidadania por nascença é um desejo antigo de Trump que não foi implementado em seu primeiro mandato porque seus então assessores não encontraram um caminho jurídico viável àquela altura. Mas em 2024, Trump fez da questão migratória um dos temas centrais de sua campanha, descrevendo um país "invadido" por estrangeiros e frequentemente descrevendo os migrantes como criminosos. "Eles envenenaram o sangue do nosso país", afirmou Trump, em mais de uma ocasião.
Os quatro anos de governo Biden foram marcados pela entrada irregular de milhões de pessoas pela fronteira com o México, o que custou popularidade ao governo democrata.
Alice não está sozinha no plano de processar o governo federal. Na verdade, 22 Estados americanos já entraram com ações para desafiar a constitucionalidade da lei.
Entre eles, Nova York, Califórnia e Massachusetts, onde a família de Alice vive.
Além deles, organizações da sociedade civil, como a União Americana para Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), e a brasileira Brazilian Worker Center também já abriram ações.
O argumento central dos Estados, das ONGs e de Alice é a de que a determinação de Trump se choca com direitos muitos claros estabelecidos pela Constituição.
Mais especificamente, a 14ª Emenda, de 1868, que garante que "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem".
A emenda foi feita para estender os mesmos direitos aos cidadãos negros e brancos, depois da Guerra Civil no país.
Desde sua criação, ela já foi questionada algumas vezes na Justiça, e a jurisprudência firmada é a de que o nascimento em solo americano garante a cidadania ao nascido, não importa a nacionalidade ou o status migratório de seus pais.
"A grande promessa da nossa nação é que todos os nascidos aqui sejam cidadãos dos Estados Unidos, capazes de realizar o sonho americano", disse a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, ao argumentar que o decreto de Trump é inconstitucional.
CLAUDIA LEITTE, SIMONE MENDES, THAMMY: as celebridades que tiveram filho nos EUA
Milhões de adultos sem cidadania?
Fila de pessoas para deportação na fronteira, em 21 de Janeiro, após posse de Trump, que prometeu deportação em massa.
Getty Images via BBC
Em sua ordem executiva, Trump argumenta que o termo "sujeitas à sua jurisdição" exclui pessoas indocumentadas ou temporárias no país e que, por isso, seus descendentes não teriam direito à cidadania.
Segundo ele, a Constituição americana tem sido interpretada de modo incorreto há mais de 150 anos.
Os críticos da imigração argumentam que a interpretação atual da Carta funciona como um "grande ímã para imigração ilegal" e que encoraja mulheres grávidas sem documentos a cruzar a fronteira para dar à luz, um ato que tem sido pejorativamente chamado de "turismo de parto" ou de "ter um bebê âncora".
A prática, no entanto, não se restringe a imigrantes indocumentados. Nos últimos anos, popularizou-se entre a classe média alta no Brasil alguns planos de viagem à Flórida para grávidas, com visto de turismo que garante a permanência nos Estados Unidos por até seis meses.
Estes serviços oferecem aos pais não apenas a oportunidade de fazer o enxoval nas lojas do país como de garantir o nascimento do bebê em um hospital americano, de modo que a criança retorne ao Brasil com um passaporte dos Estados Unidos.
"Com essa ordem executiva, pelo menos por enquanto, essa indústria do turismo do parto fica inviabilizada", afirmou a advogada Leda Almeida, CEO do escritório AG Immigration, especializado em direito migratório e baseado na Flórida.
Para Sam Erman, professor de Direito da Universidade de Michigan e autor de Almost Citizens: Puerto Rico, the U.S. Constitution and Empire ("Quase cidadãos: Porto Rico, a Constituição dos EUA e o Império", em tradução livre), a argumentação de Trump e de seus apoiadores, neste caso, não se sustenta nem legal, nem historicamente.
"Nesse contexto, a expressão jurídica 'sujeita à sua jurisdição' tinha um objetivo específico", diz Erman à BBC News Brasil.
"Excluir os filhos de embaixadores, que estão parcialmente sujeitos às leis de seus países, os filhos de soldados de possíveis exércitos invasores e os filhos dos americanos nativos, que estão primeiramente vinculados às leis de suas nações e não às dos Estados Unidos."
Segundo Erman, os processos movidos pelos Estados e por organizações da sociedade civil deverão chegar à Suprema Corte, que dará a palavra final.
Isso, no entanto, poderá demorar mais de um ano. Neste meio tempo, se nenhuma decisão liminar barrar a ordem executiva, funcionários federais em todo o país estão oficialmente orientados a não mais fornecer documentos, como o passaporte, a bebês que não tenham ao menos um dos pais com direito à residência permanente ou cidadania americana.
"Vai virar mais uma novela", concorda Almeida, sobre a perspectiva de uma batalha judicial de meses pela frente.
Na atual conformação, a Suprema Corte tem uma maioria de seis a três membros a favor de posições consideradas mais conservadoras. Isso significaria, a princípio, uma vantagem para a tese de Trump.
Recentemente, a Corte reverteu uma decisão de mais de 50 anos que garantia o aborto legal em todo o país. O alinhamento dos juízes, porém, não é automático, especialmente em temas controversos.
"O que me preocupa é isso, que a Suprema Corte tem mudado a forma de interpretar as leis", diz Alice.
"O que me garante que não farão agora como fizeram com o aborto?"
Os especialistas em direito ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, acham improvável que a interpretação da Constituição se altere desta maneira.
Isto porque, caso a Suprema Corte decida que Trump tem razão, os impactos da decisão irão muito além dos direitos dos nascidos no país de 2025 em diante, como a filha de Alice.
A Constituição é uma só e sua aplicação tem que ser igualitária a todos os cidadãos no país. Uma nova interpretação retroagiria então a todos que possam se enquadrar nos casos, apontam os especialistas.
Como resultado, qualquer pessoa viva nascida de pais imigrantes indocumentados ou temporários perderia seu direito à cidadania americana, a menos que esteja coberta por alguma outra regra.
"Eu me surpreenderia muito se os tribunais estivessem dispostas a retirar a cidadania de pessoas que efetivamente a mantiveram durante toda a vida", afirma Erman.
Para Almeida, tal decisão lançaria o país em uma enorme insegurança jurídica, além de em um desafio logístico de reorganizar a documentação de milhões de pessoas.
"Para mim, é um ato muito mais simbólico, muito mais para Trump comunicar aos eleitores dele que fez o que prometeu e para desencorajar imigração", diz Almeida.
"Até porque não vejo viabilidade para que isto se estabeleça."
COMENTÁRIOS